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A ressignificação do riso: A evolução dos palhaços em Hollywood

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Não sabemos ao certo quando os palhaços abandonaram os picadeiros dos circos e passaram a estrelar grandes produções hollywoodianas. Alguns afirmam que tudo começou em 1924, quando Lon Chaney introduziu o clássico palhaço whiteface ao cenário mainstream no filme Ironia da Sorte. Posteriormente, quase um século depois, essa é a mesma característica nos rostos dos palhaços que vemos na grande tela. Com o recente lançamento de It: Capítulo 2 e o cada vez mais próximo Coringa, julgamos que seria uma boa oportunidade para traçar uma linha cronológica capaz de explicar a ressignificação dessa figura.

Com o passar do tempo, é cada vez mais comum deixarmos de associar o palhaço à comédia e transformá-lo num arauto da tragédia. Tal transformação é refletida em sua maquiagem, que foi passando do fantástico para o realista, buscando acompanhar a sensibilidade pedida por seus respectivos cineastas. Levando isso em consideração, Jake Kring-Schreifels, do The Ringer, redigiu um compilado de informações a respeito das maquiagens de grandes palhaços do cinema. Do cômico Coringa de Cesar Romero até o recente e subversivo papel de Joaquin Phoenix, muitos conceitos foram redefinidos e eventos que marcaram a sociedade, interferiram diretamente na representação dessa figura nas telas.

Partindo dessa premissa, levantamos os seguintes questionamentos: como, quando e porque o sorriso compulsório pintado por cima da maquiagem branca deixou de ser associado unicamente à comédia e passou a representar terror?

O efeito Pagliacci

Talvez a leveza do riso tenha assumido um tom sombrio com a popularização da ópera Pagliacci, de 1892. O palhaço deprimido matou sua esposa e o amante dela em frente à uma enorme platéia. Mesmo não sendo um grande fã da música erudita, você provavelmente já deve ter tido contato com o nome em algum lugar. Um exemplo assertivo para a comunidade nerd é a “piada” que o Rorschach faz em Watchmen. “Ouvi uma piada certa vez. Um homem vai ao médico. Diz que está deprimido. Diz que a vida parece dura e cruel. Diz que se sente sozinho num mundo ameaçador. O médico diz: ‘o tratamento é simples. O grande palhaço Pagliacci está na cidade. Vá assisti-lo. Isso deve alegrá-lo’. O homem se desfaz em lágrimas. ‘Mas doutor’, ele diz… ‘Eu sou Pagliacci'”, contou o vigilante, enquanto investigava a morte do Comediante.

Como veremos adiante, esse monólogo é um significativo exemplo de como tendemos a ignorar a humanidade por trás do rosto pintado. Consequentemente, esse pode ter sido um dos fatores que levaram o palhaço de um mensageiro da alegria à um emissário do medo.

A vida imita a arte (e vice-versa)

Seguindo a cronologia traçada, o próximo exemplo nerd que temos, vem da década de 1960. Assim, pela primeira vez, assistimos Cesar Romero pintando o rosto para viver o Coringa. Contudo, o personagem da série de televisão Batman, ainda estava longe de representar uma real ameaça. Na verdade, tudo mudou durante o intervalo de tempo entre os personagens de Romero e Jack Nicholson. Esse hiato foi marcado por um grande e trágico evento.

Entre os anos de 1972 e 1978, John Wayne Gacy entrou para a história como um dos assassinos em série mais bizarros já vistos. Sob o disfarce de “Pogo, o Palhaço”, o sujeito violentou e assassinou mais de 33 jovens. A partir daí, o rosto branco, adornado por triangulares olhos azuis e um enorme sorriso vermelho, assumiu um tom ameaçador. Com a onda do “Palhaço Assassino” em alta, a percepção social dos artistas circenses foi totalmente alterada. Obviamente, isso foi refletido na cultura pop. Por isso, no Batman de 1989, Tim Burton contratou Nick Dudman para transformar Nicholson em uma aterrorizante e inédita versão do Palhaço do Crime.

Pegando referências da maquiagem de Romero de 1966, o maquiador adicionou detalhes sombrios, inspirados no filme mudo de 1928, O Homem Que Ri. Como os trabalhos de Burton costumam se apoiar no surrealismo, não seria diferente dessa vez. Dudman preferiu inclinar a fisionomia do palhaço para o lado cartunesco. Assim surgiu o sorriso inflexível do Coringa. No entanto, se engana quem acha que foi uma tarefa fácil. “Isso é uma caricatura, é exagerado, é um pouco surreal e eu tenho que fundamentá-la na realidade. É como construir um Batmóvel. A coisa toda é ridícula, mas você precisa acreditar que é um carro que funciona”, contou o maquiador.

Dos livros para as telas

Coincidentemente, um ano após o melodrama de Burton, Tommy Lee Wallace adaptou It pela primeira vez. O romance de Stephen King foi dividido em uma minissérie de duas partes, onde o maquiador Bart Mixon ficou encarregado de criar o primeiro visual de Pennywise. Assim como Dudman, Mixon esbarrou em desafios. Ao mesmo tempo em que precisava de uma palhaço carismático o suficiente para atrair crianças, era preciso que o mesmo apresentasse características demoníacas. Especialmente nesse caso, uma referência brasileira foi incorporada na maquiagem do palhaço dançarino. Wallace pediu que Bozo e Ronald McDonald, grandes personalidades comerciais da televisão, fossem utilizados como referência pelo artista de maquiagem.

Posteriormente, assim que Tim Curry foi oficialmente escalado, Mixon deu ao seu personagem volumosos cabelos vermelhos e uma maquiagem ornamentada por um grande e protético nariz vermelho. O conceito por trás de Pennywise era forçar o espectador a explorar sua própria psique. Para o cineasta, era importante que o público moldasse seus próprios medos. Esse foi o primeiro passo para a reformulação da perspectiva sociocultural relacionada a figura do palhaço.

A identificação com o personagem

O princípio estético utilizado na minissérie de Wallace foi responsável por aproximar a figura etérea e feliz do palhaço, das imperfeições e fobias humanas. Como resultado desse aprimoramento conceitual, vimos Christopher Nolan levar o Coringa de sua trilogia ao extremo. O diretor da trilogia O Cavaleiro das Trevas explorou uma versão sombria, realista e traumática do palhaço do crime. Em 2008, vimos John Caglione Jr. transformar o famigerado sorriso pintado, em cicatrizes. Dessa vez, o maquiador não se preocupou com várias camadas de tinta, ele queria um efeito vívido e desgastado. O intuito não era esconder o rosto de Heath Ledger, e sim dar a ele uma aparência bagunçada e angustiada. Essa acessibilidade visual, proporcionada pelo visual desgrenhado, buscava sugerir que o personagem caiu no caos que ele mesmo criou e que qualquer homem é capaz de cair na loucura.

O breve distanciamento da figura do palhaço

Oito anos depois, vimos o maquiador Alessandro Bertolazzi trabalhar com David Ayer, em uma versão moderna do Coringa. Embora a performance de Jared Leto seja altamente questionável, a maquiagem de seu personagem em Esquadrão Suicida não entra na lista de erros. Transformado em um gângster contemporâneo, o personagem de Leto destoou totalmente do que já havíamos visto anteriormente. No entanto, embora a aparência estilizada tenha sido muito bem executada, acabou se distanciando muito da ideia de palhaço. No fim, o resultado foi um rostinho bonito acompanhado por um desempenho decepcionante.

O retorno às raízes

Em 2017 a popular maquiagem de palhaço já estava saturada. Felizmente o filme de Nolan abriu portas para abordagens mais estilísticas. Foi assim que o diretor Andy Muchietti se sentiu livre ao assumir a enorme responsabilidade de ressuscitar Pennywise em um reboot de It. Assim sendo, sem deixar de lado as origens, Muschietti retomou a carregada fundação branca. Porém, dessa vez ele substituiu a prótese vermelha no nariz por uma pintura mais suave. Ao mesmo tempo, a peruca ruiva deu lugar à um cabelo mais realista e um crânio maior e arredondado com uma pintura descascada. Em seguida, nos deparamos com o grande destaque da maquiagem, as linhas vermelho-sangue que saíam da boca do palhaço e subiam até um pouco acima das sobrancelhas.

O Pennywise de Bill Skarsgard sem dúvidas é muito mais monstruoso do que aquele visto na década de 1990. Da mesma forma, vimos que apesar da maquiagem mais trabalhada, a ameaça representada pelo personagem continuou sendo moldada pelo público.

Portas abertas para a inovação

Por fim, no próximo mês, acompanharemos a narrativa do Coringa de Todd Phillips. Em suma, o personagem retoma o lado humanizado daquele interpretado por Ledger. Todavia, como já vimos nos trailers liberados, Arthur Fleck é um palhaço de verdade, essa é sua profissão. Por isso, seu rosto contará com uma cobertura mais tradicional, sem adição de próteses, permitindo uma identificação de quem está por trás.

Já sabemos que essa obra explorará um lado psicológico jamais visto do vilão. Assim, tal qual o Pennywise da década de 1990, o subconsciente do público desempenhará o trabalho de definir as reais intenções do protagonista. Ao mesmo tempo, sua humanidade, semelhante a do papel de Ledger, ressaltará nossa identificação com o mesmo. Assim, nossas aflições estarão mais palpáveis do que nunca e o riso dará lugar total à angústia. É provável que esse seja o motivo da aclamada recepção do filme no Festival de Veneza. Só para ilustrar, o personagem, retratado por Phillips, vem sendo anunciado como algo jamais visto. Portanto, é provável que esse seja um sinal de que, mais uma vez, a figura do palhaço foi ressignificada e que as portas para a inovação estejam mais abertas do que nunca.

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