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Canibalismo, história e hipocrisia

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A humanidade tem um histórico com canibalismo e, com a série sobre Jeffrey Dahmer em alta, o assunto também está sendo bastante repercutido. A prática é uma das matérias-primas de pesadelos e temos exemplos de sobra desde a infância. Afinal, quem nunca ouviu a história de João e Maria?

Não há exemplo tão chocante do que é selvageria que a ideia de uma pessoa comendo o tutano dos ossos de um ser humano.

O que é canibalismo?

Vale destacar que o canibalismo vai além daquela ideia de assassinar alguém para comer sua carne. Isso porque ela também se encaixa no ato de comer cinzas de parentes para honrá-los, como fazem os ioanomâmis, provavelmente o único grupo étnico do planeta em que algum tipo de canibalismo ainda é comum.

Os dois casos exemplificam bem o que os antropólogos costumam chamar, respectivamente, de exocanibalismo (comer gente de fora do grupo a que se pertence) e endocanibalismo (a devoração de membros do próprio povo).

“Há o canibalismo funerário, realizado para honrar os mortos; o agressivo, que visa aos inimigos, e, é claro, o de sobrevivência, praticado em condições extremas como acidentes e naufrágios”, diz a arqueóloga italiana Paola Villa, da Universidade do Colorado, nos Estados Unidos. “Na Idade Média e na Renascença, houve até o que podemos chamar de canibalismo medicinal, no qual certos remédios incluíam sangue ou tecidos humanos”, afirma ela.

Classificar é fácil, mas é difícil entender o ato e por que ele provoca repulsa em alguns e fascínio em outros. “Não há evidências do canibalismo como prática socialmente aceita em nenhuma parte do mundo”, disse o antropólogo norte-americano William Arens no livro The Man-Eating Myth (“O Mito do Antropófago”, inédito em português), de 1979.

No entanto, houve alguns momentos em que o canibalismo ocorreu e foi de certa forma comum.

Canibalismo na Europa

Em 2001, um técnico de computador solitário que morava no campo no norte da Alemanha anunciou online um homem bem constituído disposto a participar de um ato sexual mutuamente satisfatório. O aviso de Armin Meiwes foi semelhante a muitos outros na Internet, exceto por um detalhe bastante importante: o homem solicitado deve estar disposto a ser morto e comido.

Acontece que Meiwes não precisou procurar muito. A duzentos e cinquenta quilômetros de distância, em Berlim, um engenheiro chamado Bernd Brandes concordou em viajar para a fazenda de Meiwes. Lá, um vídeo sangrento encontrado mais tarde pela polícia documentou a participação consensual de Brandes no jantar mortal. O canibalismo foi um choque para o público alemão e um enigma para os promotores alemães que queriam acusar Meiwes de um crime.

Por causa do consentimento de sua vítima, Meiwes foi inicialmente considerado culpado de algo semelhante a um suicídio assistido e condenado a oito anos de prisão. Se não houvesse um alvoroço generalizado sobre a pena aparentemente branda, Meiwes estaria fora da prisão agora. Em vez disso, o alvoroço levou a um novo julgamento subsequente, no qual Meiwes foi considerado culpado de matar por prazer sexual. Ele provavelmente passará o resto de sua vida na cadeia.

Embora os europeus tenham ficado chocados com o caso, vale destacar que sua história é regada de casos de canibalismo. O primeiro incidente canibal do mundo documentado por vários relatos independentes em primeira mão ocorreu durante as Cruzadas por soldados europeus, diz Jay Rubenstein, historiador da Universidade do Tennessee, Knoxville.

Canibais cristãos

Cruzadas

Reprodução

Essas histórias em primeira mão concordam que em 1098, após um cerco bem-sucedido e captura da cidade síria Ma’arra, soldados cristãos comeram a carne de muçulmanos locais. Porém, depois disso, os fatos ficam obscuros, diz Rubenstein.

Isso porque alguns cronistas relatam que os corpos foram consumidos secretamente em “banquetes perversos” nascidos da fome e sem a autorização dos líderes militares, diz Rubenstein. Outros relatórios sugerem que o canibalismo foi feito com a aprovação tácita de superiores militares que desejavam usar histórias do ato bárbaro como uma tática de medo psicológico em futuras batalhas da Cruzada.

De outro modo, a sociedade europeia pós-Cruzada não estava confortável com o que aconteceu em Ma’arra, diz Rubenstein. “Todo mundo que escreveu sobre isso ficou perturbado”, diz ele. “A Primeira Cruzada é o primeiro grande épico europeu. Era uma história que as pessoas queriam celebrar”. Mas primeiro eles tiveram que lidar com a mancha embaraçosa.

Parte do problema era que o canibalismo em Ma’arra simplesmente não se encaixava na autoimagem europeia. Nos tempos medievais, inimigos culturais – não heróis militares ou religiosos – eram comumente descritos como canibais ou gigantes, “especialmente em narrativas de invasão e conquista territorial”, argumenta Geradine Heng, em Cannibalism, The First Crusade and the Genesis of Medieval Romance. “Bruxas, judeus, selvagens, orientais e pagãos são concebíveis como – de fato, devem ser – canibais; mas no imaginário medieval do século XII, o sujeito europeu cristão não pode”.

Escravidão

Além disso, posteriormente, a escravidão também se tornou palco de canibalismo. Isso em um contexto em que europeus justificavam a subjugação dos cativos por conta de sua “natureza selvagem”. Há diversos relatos, como o da embarcação Arrogante, capturada em 1837 no litoral cubano. Havia mais de 330 africanos a bordo e quando autoridades analisaram quem sobreviveu, os marinheiros foram acusados de terem matado e cozinhado um dos africanos.

Sendo assim, o canibalismo, em muitos casos, foi tanto repreendido quanto praticado, muitas vezes, pelos mesmos grupos, a depender do contexto social de e quem está praticando.

Fonte: Brill

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