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O jovem que foi inocentado após enviar carta ao STF

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Depois de quatro anos em regime fechado, João (nome fictício) enviou uma carta ao Supremo Tribunal Federal (STF). Com isso, ele foi inocentado do crime de assalto.

João, um homem negro de 23 anos, pedreiro, foi condenado a oito anos e dez meses de reclusão por um assalto que aconteceu em 2018 em um bairro da periferia de São Paulo. Na carta, ele afirma que não tem nada a ver com o crime, e que sua prisão e sentença foram ilegais.

A carta, escrita na cela de um presídio no interior de São Paulo, chegou a Brasília e foi encaminhada à Defensoria Pública da União (DPU), que assumiu o caso e entrou com um recurso no STF.

Para três dos cinco ministros da 2ª turma do Supremo, a prisão não seguiu a lei e o jovem foi condenado sem provas. Ele foi inocentado em fevereiro.

Nada de ilícito

Foto: Fernando Otto/ BBC

Antes de entender o envio da carta ao STF, é preciso explicar que o caso de João começou em uma noite chuvosa no final de 2018. Na época, três pessoas foram assaltadas em frente a uma casa na periferia paulistana. O crime foi cometido por três ladrões, um deles armado. 

A Polícia Militar foi acionada, e passou a circular pelas ruas. Uma hora depois, em uma ciclovia que liga vários bairros da região, os policiais “avistaram um indivíduo correndo em desabalada carreira”, de acordo com o boletim de ocorrência.

Era João. “Eu estava voltando de uma balada, não sabia de roubo nenhum. Estava correndo porque chovia forte, e eu queria chegar rápido em casa. Quando passava embaixo de um viaduto, apareceram uns policiais atrás da pilastra.”

Os agentes afirmaram que não foi encontrado “nada de ilícito” com o jovem. “Indagado acerca do roubo, este negou peremptoriamente a conduta”, os PMs disseram ao delegado, mais tarde.

Os policiais tiraram uma foto do jovem e a enviaram pelo WhatsApp para colegas que estavam com as três vítimas. Elas disseram ter reconhecido João pela imagem no celular. Ele foi preso em flagrante. Logo depois, na delegacia, as três vítimas o reconheceram pessoalmente.

O problema é que todo o processo criminal foi baseado nesse reconhecimento produzido de uma maneira considerada ilegal pela própria Justiça. De acordo com o artigo 226 do Código de Processo Penal, o reconhecimento de suspeitos precisa seguir algumas regras.

Pessoas parecidas fisicamente devem ser colocadas lado a lado, e a vítima vai apontar quem ela acredita ser o autor do crime. No entanto, com João essas regras não foram seguidas.

O argumento da defesa e a carta apontou que João foi reconhecido de maneira ilegal, e não havia outras provas contra ele.

“Não quer dizer que a vítima aja de má-fé para prender um inocente, mas ela está em um momento de tensão, nervosismo, medo… É comum se confundir vendo uma foto isolada, fora de contexto”, diz Gustavo de Almeida Ribeiro, defensor público federal que representou João no STF.

Denúncia

Foto: Fernando Otto/ BBC

O Ministério Público de São Paulo (MP-SP) denunciou João, apontando que as provas “eram robustas e maciças”. 

Quando a Defensoria Pública de São Paulo pediu a revisão da sentença, o procurador José Antonio Franco da Silva respondeu que, na análise de roubo, “a palavra da vítima assume peso fundamental no contexto probatório para apontar a autoria, sendo certo que, em muitos casos, apresenta-se como única fonte.”

De acordo com ele, “a utilização da fotografia do acusado não significou fundamento para a condenação, que está alicerçada no reconhecimento pessoal, realizado em duas oportunidades, afastando por completo eventual dúvida acerca da autoria”.

O relator do caso no Tribunal de Justiça de São Paulo, o desembargador Antonio Carlos Machado de Andrade, concordou com a tese do MP e manteve a condenação.

Porém, após lerem a carta, três ministros do STF discordaram desse argumento e absolveram o jovem.

Carta afirma que ele pode ter sido julgado pelo passado

João informa que procurou o Código Penal na biblioteca da cadeia para entender seu caso e fundamentar as cartas destinadas à Justiça.

“Comecei a ler até entender a lei. Vi que reconhecimento por foto não era correto. Falei com funcionários do presídio, e todo mundo me falava que isso não existe, que eu tinha de recorrer. Alguém me orientou a escrever uma carta para Brasília.”

Na carta, ele aponta que sua prisão pode estar relacionada ao preconceito por causa de uma condenação anterior, ele estava cumprindo regime semiaberto por um roubo.

Já a mãe aponta que a cadeia mudou seu filho.

“Ele voltou outra pessoa: magro, sem vontade de comer, não consegue dormir, não sai de casa, não tem ânimo para nada. E eu morro de medo de ele sair e ser preso de novo, não paro de ligar para saber onde ele está”, afirma.

Além disso, João revelou que quando foi preso, ele esperava um filho com uma garota com quem se relacionou brevemente. “Meu filho nasceu comigo na cadeia. Não o vi nascer, nunca tive contato com ele. Cresceu sem o pai. Hoje, ele não me reconhece.”

Acesso à defesa por meio da carta

Foto: Dorivan Marinho/ SCO/ STF

Escrever uma carta ao STF foi a solução encontrada por João para que sua história fosse analisada com mais cuidado. Quem leu a história foi a defensora pública federal Miriam Aparecida de Laet Marsiglia, de Brasília. “Para mim ficou muito claro que ele era inocente, e que precisávamos corrigir a injustiça. Foi um caso que me tocou muito”, diz.

Há quatro anos, o Supremo e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) firmaram um acordo para repassar as correspondências de presos enviadas a Brasília para a Defensoria Pública da União (DPU).

A carta enviada ao STF termina da seguinte maneira: “Peço que meu processo seja revisado porque estou sendo punido por algo que não cometi. Para uma possível condenação, tudo deve ser claro como a luz. Condenação exige certeza, e não ‘alta probabilidade’. Desde já agradeço e aguardo retorno.”

Fonte: BBC

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