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Musselina de Dhaka, o tecido que, mesmo não existindo, desafia gerações

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A moda é um dos segmentos artísticos mais antigos do mundo. O universo fashion não só movimentou inúmeras culturas como tanto alimentou o comércio. Há, por exemplo, milhares de prendas que foram criadas há anos cuja existência ainda nos agracia. Não obstante, por estar sempre em movimento, existem algumas peças que, infelizmente, não podem mais ser adquiridas, como a musselina de Dhaka.

Criada há 200 anos, a musselina de Dhaka é, de longe, um dos tecidos mais valiosos que já existiram. Isso mesmo, não existe mais. Mas por quê?

Musselina de Dhaka

O tecido nasceu em Dhaka, Blangadeshe, no Sul da Ásia. Quando se fez presente, passou a ser originalmente utilizado para compor tradicionais vestimentas de certas regiões da Índia, como os saris e os jamas. Após ter ganhado inúmeros adeptos no sul da Ásia, o tecido passou a ser utilizado em alguns países europeus, como Inglaterra e França. Por ser caro e elitista, tornou-se o preferido da aristocracia.

Altamente utilizada pela classe que vangloriava o poder e o status, a musselina de Dhaka reverberou em entre as mulheres da europa e causou um burburinho ldanado, afinal, por ser transparente, mostrava praticamente tudo. Isaac Cruikshank, um renomado ilustrador europeu, registrou com seus fortes traços uma gama de mulheres usando longos vestidos de musselina. Em suas ilustrações, as quais retratavam a realidade da época, era possível não só observar as exuberantes curvas das adeptas do tecido, mas também os mamilos e pelos pubianos.

Os conservadores criticaram ferozmente o uso da musselina de Dhaka. Mesmo sendo alvo de fortes críticas, o tecido, em nenhum momento, deixou de ser um sucesso, afinal, só era visto nos corpos daquelas que tinham dinheiro suficiente para adquiri-lo. O tecido, por exemplo, foi visto no corpo da rainha francesa Maria Antonieta, da imperatriz Joséphine Bonaparte e da escritora inglesa Jane Austen.

Depois de sua ascensão, desapareceu, exauriu-se.

O desaparecimento do tecido

De acordo com uma recente reportagem publicada pelo UOL, o motivo de não usufruirmos hoje da musselina de Dhaka é a complicada técnica de confecção. Composta por ao todo de 16 etapas, a técnica foi esquecida. Outro motivo que não ajuda em nada a reconstrução da técnica é a matéria prima, uma rara espécie de algodão.

O algodão do qual estamos falando é fruto da planta Gossypium arboreum var. neglecta, a qual, antigamente, crescia nas margens do rio Meghna, mas, hoje, infelizmente, está extinta. Conforme expôs a reportagem do portal UOL, a planta dava vida, duas vezes ao ano, a uma única flor amarela, que, magicamente, produzia fibras de algodão, bem distintas dos fios que são produzidos pela Gossypium hirsutum, espécie responsável por 90% do algodão que abarrotam o comércio hoje.

As fibras do algodão da Gossypium arboreum var. neglecta, por se romperem facilmente, desafiavam o manuseio. Os residentes locais, então, se viram diante da obrigação de desenvolver técnicas que os auxiliassem a trabalhar com os desafiadores fios. Depois de erros e acertos, o processo de produção se materializou. As 16 etapas só eram cumpridas com sucesso por conta de um esforço comunitário, o qual envolvia a presença de jovens e idosos, homens e mulheres.

O árduo processo

Para obter os desejados fios, os residentes locais, primeiro, lavavam as bolas de algodão usando os minúsculos dentes do peixe-gato de wallago, uma espécie nativa dos lagos e rios da região.

Depois de limpas, era preciso esticar as fibras. O movimento, para ser bem sucedido, necessitava ser feito em locais com altos níveis de umidade. Por isso, essa etapa em específico era realizada em barcos. Começava-se o trabalho no início da manhã e só se finalizava no final da tarde – os horários mais úmidos do dia.

Após a fiação, iniciava-se a tecelagem. O processo, aqui, levava meses para ser concluído, pois todos os detalhes eram integrados diretamente ao tecido. A produção, aqui, segundo as informações que constam na reportagem publicada pelo UOL, era feita com base na mesma técnica aplicada nas famosas tapeçarias reais da Europa medieval.

Reprodução da musselina de Dhaka

Muitos daqueles que usufruíram do tecido duvidavam que toda a produção era humana. Alguns até chegaram a dizer que a musselina de Dhaka era feita por sereias, fadas e até fantasmas. Independente dos boatos, hoje, como já dissemos, não a vemos disponível no mercado por conta da árdua produção e da falta da matéria prima.

Mesmo que se pudéssemos obter o raro algodão, o manuseio das fibras seguiria sendo um desafio. Como revelou Saiful Islam, diretor de uma agência fotográfica e líder de um projeto que visa ressuscitar o tecido, ao portal UOL, “a maioria dos tecidos de hoje têm contagem de fios entre 40 e 80 – o que significa que contêm aproximadamente esse número de fios horizontais e verticais entrecruzados por polegada quadrada de tecido. A musselina de Dhaka, por outro lado, tinha contagem de fios na faixa de 800-1200”.

Islam, que é natural de Bangladesh mas vive em Londres há cerca de 20 anos, conheceu a história da musselina de Dhaka pela primeira vez em 2013. Desde então, o empresário começou a estudar processos que fossem capazes de trazer de volta o tecido.

“O Museu Victoria and Albert (em Londres) tem uma coleção excelente, com centenas de peças”, diz Islam. “Se você for para o English Heritage Trust (organização de patrimônio cultural da Inglaterra), eles têm 2.000 peças. E, no entanto, Bangladesh não tinha nenhuma”.

Em meio a pesquisas e mais pesquisas, Islam decidiu criar a Bengal Muslin, uma empresa colaborativa. Hoje, sua equipe já conseguiu, por exemplo, sequenciar o DNA da planta extinta. Para cultivar novas plantas, Islam escolheu uma pequena ilha no meio do Meghna, em Kapasia, a 30 km de Dhaka, na direção norte. “Era muito ideal. O terreno é fértil porque se formou com o acúmulo de sedimentos do rio”, explica Islam.

Em 2015, a equipe do empresário realizou a primeira colheita. Mesmo tendo sequenciado o DNA, Islam teve que combinar os fios com os fios de algodão das phuti karpas, o que, obviamente, gerou um fio híbrido. Para fazer o processo de fiação, o empresário contratou Al Amin, um mestre tecelão.

Meses depois, o resultado se mostrou um sucesso. Somente este ano, a equipe fez vários saris com a musselina híbrida. Algumas das peças estão sendo exibidas em certas partes do mundo. Outras foram vendidas – e por milhares de libras.

“Nos dias de hoje, na era da produção em massa, é sempre interessante ter algo especial”, diz. Islam, mesmo chegando até aqui, ainda segue pesquisando novos meios para produzir uma musselina Dhaka que seja 100% pura. “É uma questão de orgulho nacional. É importante que nossa identidade não seja ligada apenas à pobreza, por nossas indústrias de confecções (precarizadas), mas também pela origem de um dos melhores tecidos que já existiu”.

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