Curiosidades

Filósofo diz que bebidas alcoólicas ajudaram a civilizar humanos

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As ciências humanas estudam há séculos a formação das primeiras civilizações. Os estudiosos tentam entender como os humanos abandonaram o estado de natureza, sem regras e em um constante clima de guerra de todos contra todos. E mais curioso é que a resposta pode estar nas bebidas alcoólicas.

O vetor para essa formação, normalmente, diz que é o surgimento das leis, da autoridade do Estado e da religião. No entanto, um novo elemento foi adicionado recentemente a essa lista: as bebidas alcoólicas.

Isso é o que aponta o livro “Drunk – How We Sipped, Danced, and Stumbled Our Way to Civilization”, “Bêbados – Como bebemos, dançamos e tropeçamos em nosso caminho rumo à civilização” traduzido, escrito pelo filósofo americano Edward Slingerland.

Processo de civilização

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Segundo o filósofo, o consumo de álcool foi uma ferramenta civilizatória fundamental por ter permitido a colaboração de “primatas egoístas e desconfiados” em grandes grupos através da formação de laços socais.

Além disso, as bebidas alcoólicas também aumentaram a criatividade do homem, quebraram barreiras, despertaram sentimentos de filiação e facilitaram a resolução de problemas de cooperação. Por conta disso que elas acabaram se tornando uma peça central na evolução humana.

Na visão de Slingerland, as bebidas alcoólicas podem ser uma droga poderosa que oferece seus riscos, principalmente as destiladas e para as pessoas que bebem sozinhas. No entanto, ele discorda dos médicos que dizem não existir um limite seguro para seu consumo.

Importância das bebidas alcoólicas

BBC

Em uma entrevista dada para a BBC News Brasil, o filósofo falou da importância das bebidas alcoólicas para a humanidade e criticou o um “neopuritanismo” que, para ele, tornou mais difícil o estudo dos aspectos positivos do álcool.

Transcrevemos aqui algumas partes dessa entrevista.

Qual foi o papel das bebidas alcoólicas no processo de civilização?

O processo de civilização requer que primatas egoístas e desconfiados colaborem em uma escala maior do que a que estávamos biologicamente preparados. Para fazer essa transição acontecer, várias tecnologias culturais tiveram que ser desenvolvidas. Uma delas é a religião, que é o tema de outros importantes trabalhos acadêmicos, mas outra delas são os intoxicantes químicos e, especialmente, o álcool.

Bebidas alcoólicas foram usadas como uma ferramenta cultural para aumentar a criatividade individual e em grupos, para quebrar barreiras entre pessoas, para criar sentimentos de filiação, para resolver dilemas de cooperação (onde estamos vulneráveis a que outras pessoas tirem vantagens), em situações que demandam confiança. E também pela necessidade de aliviar o estresse e a tensão que vêm de viver em uma grande sociedade.

O álcool não é a única ferramenta em nosso arsenal, e há várias outras que ajudam nesse processo, como a religião, sistemas legais etc. A questão central é que o papel das bebidas alcoólicas em ajudar essa transição tem sido amplamente ignorado.

Por quê?

Acho que é parte por conta do que chamo de neopuritanismo, um desconforto em falar sobre bebidas alcoólicas de qualquer forma que possa parecer positiva.

Meu background acadêmico é em estudos da religião. Se olharmos para os teóricos clássicos de religião, muitos tinham uma postura muito desdenhosa em relação a intoxicantes químicos, criticando o que chamam de “xamãs modernos” que usam alucinógenos para atingir o estágio de elevação. Isso seria uma forma falsa de ter a experiência mística, não seria a verdadeira experiência, segundo eles.

Em estudos de religião, fala-se sobre a importância da dança, do canto, dos movimentos sincronizados e, por algum motivo, se ignora completamente os intoxicantes químicos que estão sendo consumidos com frequência e em grandes quantidades enquanto as pessoas estão tendo essas experiências. É um ponto cego estranho e um melindre, uma relutância em reconhecer que as pessoas fazem isso, elas consomem essas substâncias e que isso também pode ter efeitos positivos.

Que tipo de influência sua obra pode ter, considerando que o assunto ainda é um tabu?

Muito da cobertura da imprensa sobre o livro, por falar sobre bebidas alcoólicas, trata o trabalho pelo lado divertido e de curiosidade, sem levar tão a sério. A recepção acadêmica é mais lenta, e não tive nenhum retorno formal, mas tive respostas muito positivas de acadêmicos importantes envolvidos em estudos da história e psicologia do uso de drogas. O livro é de divulgação científica, mas traz uma contribuição acadêmica real, ainda que de forma popular.

Estava preocupado com uma possível reação dura por apontar aspectos positivos das bebidas alcóolicas, mas tive menos reclamações do que esperava. A maioria veio de pessoas que têm histórico de alcoolismo, ou que tem alguém assim na família, e que reclama desse aspecto.

Mas acho que fiz um bom trabalho no último capítulo do livro, deixando claro que reconheço que o álcool é muito perigoso e está se tornando mais perigoso no mudo moderno do que foi no passado. E acho que as pessoas entendem que o livro é motivado pelo fato de que o álcool é danoso e perigoso. O desafio é entender por que continuamos tendo este gosto por intoxicantes e que eles não são apenas algo que causa problemas de saúde e sociais.

O livro aponta que bebidas alcoólicas costumavam ter mecanismos de segurança, mas que isso mudou e alterou a relação da sociedade com o álcool. Quais eram esses mecanismos e o que levou a essa mudança?

As bebidas alcoólicas sempre tiveram dois mecanismos de segurança embutidos. Um deles era o limite da fermentação natural. As leveduras usam o açúcar e o transformam em etanol porque são relativamente resistentes a ele e fazem isso como uma arma biológica na guerra contra bactérias com quem disputam os açúcares. Mas elas não são muito resistentes, então, em um determinado momento do processo de fermentação, a concentração de etanol chega a um ponto que impede a atuação das leveduras, e paralisa a fermentação.

Há muito tempo os seres humanos vêm manipulando as leveduras, que estão se tornando cada vez mais fortes. O fermento talvez seja o mais antigo “animal” domesticado pelos humanos, porque há tempos tentamos fazer bebidas mais fortes. Mas ainda assim há limites. Um vinho shiraz australiano pode chegar no máximo a 16% de álcool, e é a bebida mais forte que se pode alcançar com a fermentação natural.

Então, na maior parte da nossa história, o que consumimos eram cervejas e bebidas feitas de grãos que chegavam normalmente até 2% ou 3% de álcool. Quando se bebe algo assim, é difícil consumir álcool demais. O imenso volume que é preciso consumir para ficar bêbado faz com que seja difícil exagerar.

Quando argumento pelos benefícios sociais e individuais das bebidas alcoólicas, estou tratando de níveis baixos de embriaguez, algo até 0,08 miligramas de álcool. É muito fácil ficar abaixo disso quando se consome uma cerveja com até 3% de álcool.

Mas a humanidade inventou a destilação. Nesse processo, o etanol é separado e concentrado, e é possível produzir vodkas com mais de 90% de álcool. Pensando numa média histórica, passamos muito tempo consumindo bebidas com 5%, 10% de álcool, mas, de repente, damos um salto e chegamos a mais de 90%. Passamos então a lidar com uma nova droga, ainda que tecnicamente ainda seja o mesmo etanol.

Nossos corpos evoluíram para lidar com o etanol. Temos enzimas que servem especificamente para quebrar o etanol e retirar ele do corpo. Quando a pessoa toma doses de vodka e de tequila, ela sobrecarrega totalmente este sistema. O corpo não tem como lidar com essa quantidade de álcool consumida nessa velocidade. E as pessoas podem ficar muito bêbadas muito rapidamente, então, é um risco maior.

Outro mecanismo de segurança seria o aspecto social das bebidas alcoólicas. De que forma isso ajuda a manter o consumo de álcool em níveis mais saudáveis?

Historicamente, costumávamos consumir estas bebidas em situações em que há regras sociais. É sem precedentes o nível de acesso privado a bebidas alcoólicas que se tem hoje. Em todas as sociedades, só se bebia em público, em eventos sociais, geralmente com refeições. As bebidas sempre estavam envolvidas em rituais cuidadosamente planejados em que havia sempre uma forma de controlar as quantidades de álcool consumidas.

Em um banquete na China antiga, por exemplo, as pessoas tinham seus copos, mas só podiam beber quando uma determinada pessoa propusesse um brinde. Há uma pessoa ritualisticamente determinada para ser o mestre de brindes, que pode controlar o ritmo de consumo de bebida das pessoas.

O simpósio grego tinha uma pessoa que tinha o poder de decidir sobre a distribuição das bebidas, e ninguém podia beber de forma diferente. Ele também determinava a quantidade de água que era misturada ao vinho, podendo deixar a bebida mais diluída para reduzir o consumo.

Até mesmo em situações que parecem sem controle em bares mais contemporâneos, há regras informais que ajudam a controlar o consumo. As pessoas bebem juntas e não costumam ter ritmos diferentes. Além disso, há um processo para pedir, receber, se servir, então há “lombadas” que limitam e controlam o ritmo do consumo de álcool.

Claro que as coisas não eram universalmente uniformes, e há culturas diferentes especialmente no sul e no norte da Europa, por exemplo. As pessoas de culturas do norte bebem mais destilados, bebem mais sozinhas, ficam bêbadas com mais frequência, proíbem o consumo por crianças e adolescentes, enquanto as cultura do sul, especialmente Portugal, Espanha, Itália, bebem especialmente cerveja e vinho, sempre no contexto de refeições e com alimentos envolvidos, muitas vezes com a família, crianças são introduzidas às bebidas muito mais cedo, então o álcool é visto como uma parte normal da vida.

Tudo isso deixa de existir quando uma pessoa pode carregar o carro com caixas de vodka e levar para beber em casa, sozinho, de frente para a TV e sem ninguém controlando o ritmo e a quantidade consumidos.

Biologicamente, muitos humanos têm tendência ao alcoolismo. Aproximadamente 15% da população está geneticamente propensa, mas, se olharmos para as taxas reais, elas variam muito em todo o mundo. Os índices são muito altos na Rússia, no norte da Europa, por exemplo, nos Estados Unidos. E em lugares como na Itália, por exemplo, as taxas são muito baixas, ainda que o consumo per capita deles seja muito alto. Argumento que isso é por conta desse truque cultural. Há tradições envolvidas no consumo bebidas alcoólicas, há normas que evitam que eles bebam em excesso.

Fonte: BBC

Imagens: BBC, Superinteressante

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