Sem ser a intenção, a baiana Maria José de Castro Rebello Mendes, de apenas 27 anos, fez seu nome na história da diplomacia brasileira. No dia 28 de agosto de 1918, ela prestou concurso para o Itamaraty com o intuito de obter uma fonte de renda para sustentar sua mãe viúva e irmã doente.
O pai de Maria José, um advogado, havia morrido misteriosamente assassinado na Floresta da Tijuca, no Rio de Janeiro. Na época, a jovem não pretendia levantar bandeira alguma. Porém, ela acabou fazendo história ao ser a primeira mulher a ingressar no Ministério das Relações Exteriores (MRE).
Dessa forma, não foi nada fácil. Isso porque foram 19 provas ao longo de sete dias. De português a artimética, de datilografia a direito, de inglês a alemão, os conhecimentos de Maria José foram testados extensivamente.
Assim sendo, ao final dos exames escritos, ainda houve os exames orais e até uma redação sobre Minas Gerais. Com isso, Maria José de Castro Rebello Mendes (1891-1936) conquistou o primeiro lugar e recebeu sua aprovação no concurso. Ela era a única mulher em um grupo de cinco homens a disputar a vaga de terceiro oficial da Secretaria de Estado.
“No período imperial, os diplomatas brasileiros eram homens, brancos e bem vestidos, recrutados no seio da elite econômica e intelectual porque o Brasil buscava reproduzir os padrões europeus de ‘nobreza'”, explica Gabrielly Amparo, doutoranda em Economia Política Mundial pela Universidade Federal do ABC (UFABC). Amparo também é autora de A Diplomacia Não Tem Rosto de Mulher: O Itamaraty e a Desigualdade de Gênero (2021).
“A mulher não faz parte da história oficial do Itamaraty. Elas não estão presentes em cargos de visibilidade e prestígio internacionais. Logo, se não são ‘vistas’, tornam-se ‘invisíveis’ e ‘inexistentes’. Aquilo que desconhecemos, não existe”.
Como é de se esperar, a aprovação de Maria José for recebida com polêmicas. “Podem as mulheres ocupar cargos públicos?”, questionou o jornal A Noite na edição de 31 de agosto de 1918. Até Lima Barreto considerou a decisão do então ministro Nilo Peçanha (1867-1924) como “ideia de botequim”. “Sua Excelência, eu lhe rogo, procure arranjar para as meninas bons maridos, honestos e trabalhadores”, escreveu o autor em artigo publicado no jornal ABC do dia 5 de outubro de 1918.
Ao ser tão criticada, Maria José até consultou o jurista Ruy Barbosa (1849-1923) sobre se poderia concorrer a cargo público. “Melhor seria, certamente, para seu prestígio que continuasse à direção do lar, tais são os desenganos da vida pública, mas não há como recusar sua aspiração”, despachou o chanceler Nilo Peçanha.
“Quando começou a trabalhar no Itamaraty, em 1º de outubro de 1918, o ministério teve que adaptar, às pressas, espaço para uso como banheiro feminino, pois somente existiam na repartição sanitários masculinos”, explica o ministro Guilherme José Roeder Friaça, cônsul-geral adjunto em Madri, no livro Mulheres Diplomatas no Itamaraty (1918-2011) – Uma análise de trajetórias, vitórias e desafios (2018).
Irene Vida Gala – Reprodução
Por mais que um século tenha se passado desde a aprovação de Maria José, a diplomacia brasileira não presenciou grandes mudanças. De acordo com o Anuário do Instituto Rio Branco (2020), de 1953 a 2019, 2.235 candidatos foram aprovados no Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata (CACD). Desses, apenas 454 (20,3%) eram mulheres.
“Há variáveis que ajudam a explicar essa predominância masculina. A primeira delas é estrutural. No mundo do trabalho, os homens são a maioria nos espaços de decisão, privilégio e salário”, afirma Karla Gobo, doutora em Sociologia pela Unicamp e autora do artigo Da Exclusão à Inclusão Consentida: Negros e Mulheres na Diplomacia Brasileira (2018). “Enquanto os homens seriam o polo racional, objetivo e afeito à vida pública, as mulheres seriam emotivas, menos objetivas e voltadas aos cuidados da vida privada”.
Assim sendo, no ano de 2018, por conta do centenário da posse de Maria José, o Itamaraty lançou a campanha #maismulheresdiplomatas. Dos 3 mil servidores da pasta, aproximadamente, apenas 37% são mulheres.
Para fins de comparação, de acordo com o Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI), o percentual de embaixadores em outras nações é: Suécia (49%), Filipinas (41%), Austrália (40%), EUA (36%) e Irlanda (35%). Entre os sul-americanos, o melhor índice pertence à Colômbia (28%).
“Não havia nenhuma convicção institucional por trás dessa campanha”, afirma a embaixadora Irene Vida Gala. “Nenhum homem do Itamaraty usou seu lugar de poder para assumir, em alto e bom som, uma posição em defesa do ingresso de mais mulheres na carreira. Foi um blefe para reduzir a pressão. Ou, em linguajar diplomático, para inglês ver. Tudo se resume a uma palavra: querer. É preciso querer ampliar a representatividade. E, até que se prove em contrário, esse desejo não existe”.
Fonte: BBC